A todo instante a morte ceifa multidões, que viajam na direção do Mais Além desequipadas espiritualmente, para o grande encontro com a consciência.

Partem dos pequenos burgos, assim como das megalópoles famosas, após enfermidades degenerativas dolorosas ou, repentinamente, por intermédio de acidentes ou de fenômenos sísmicos, vitimadas pela violência urbana ou generalizada em guerras, revoluções, atos de terrorismo, suicídios vergonhosos, epidemias...

A morte a nada e a ninguém poupa, desde que se trate de ser senciente, trabalhando pela renovação do orbe e da sua humanidade, num mecanismo que parece aleatório, mas obedecendo a leis soberanas ligadas ao progresso e às transformações que se devem operar sem solução de continuidade.

O seu gume ceifa a vida na câmara uterina e na senectude humana, na infância rósea e na idade adulta, na juventude risonha e na quadra hibernal, muitas vezes conduzindo sadios e deixando enfermos, preferindo ricos e poderosos em detrimento de pobres e escravos, em aparente paradoxo, sem interrupção.

Detestada por uns e anelada por outros, realiza o seu mister, gerando sofrimentos e deixando um rastro de amargura depois que passa, ou atendendo aos apelos desesperados daqueles que se entregam às alucinações, sempre incorruptível, num incessante operar.

Considerada como um dos mistérios da vida, silenciosamente faz que a mitológica barca de Caronte conduza os viajantes para o outro lado do Estiges da existência física.

Menosprezada por muitos indivíduos e não poucas vezes ridicularizada através de sátiras picantes e ofensivas, tanto quanto bem recebida pelos mártires, missionários e santos, é infatigável no ministério difícil que lhe foi concedido pela vida, mas graças a cuja função, liberta escravos de pesados grilhões, padecentes de terríveis constrições de dor e desalento, de expiações que parecem não ter fim, tornando-se benfeitora de incontáveis aflições terrestres...

Muitas vezes, anuncia a sua próxima visita, facultando que o viajor prepare-se para a inevitável jornada; aparece também inesperadamente, e sem maior consideração, desde que é de todos sabido que a condição única para morrer é viver na organização biológica.

Ninguém, portanto, que se possa surpreender com a sua presença e arrebatamento, porque todos quando nascem já estão condenados ao seu encontro, devendo estar preparados para o momento que chegará.

No seu afã de desincumbir-se do dever, inspira amor e compaixão, mas oferece também saudade e agonia, que fazem parte do processo humano existencial.

Nunca se entibia ou receia executar a tarefa que lhe foi confiada, comportando-se serenamente e despida de atavios e ilusões. Aliás, é a grande mensageira da Realidade que vence as fantasias e as quimeras, convidando às reflexões profundas do pensamento e do sentimento.

Morrer, no entanto, não significa extinguir-se, senão transferir-se de uma situação vibratória para outra mais pujante e grandiosa.

Morte é vida em toda a sua plenitude.

Os aparatos com que a ilusão vestiu o imaginário das pessoas, dão-lhe um significado e apresentação irreais, que devem ser desmistificados, tornando-se um fenômeno natural em torno da organização biológica de todos os seres...

Em injustificáveis mecanismos de fuga em torno da imortalidade, os cultos religiosos criaram toda uma complexa ritualística para iludir os seus fiéis, organizando espetáculos injustificáveis para encobrir o fenômeno mediante comportamentos sociais, extravagantes uns e fúnebres outros, mantendo os equívocos em torno da sobrevivência do espírito.

Em face de tais condutas, assim como de outras originadas em doutrinas filosóficas e científicas firmadas no materialismo e no hedonismo, os membros dessas multidões avançam pelas sombras do Além-túmulo, sem encontrarem o amanhecer de esperanças, perdendo-se em conflitos prolongados ou não, de acordo com a lucidez mental e a conduta moral que os caracterizaram enquanto no trânsito pelo corpo físico.

A morte é a grande desveladora dos conteúdos morais da criatura humana.

Enquanto se movimenta no castelo celular, o espírito consegue olvidar compromissos e deveres, mascarar-se com personificações ilusórias e mentirosas, conduzir-se distante dos valores legítimos, ludibriando os outros e a si mesmo, até o momento em que os fatores degenerativos tomam-lhe o corpo, demonstrando-lhe a fragilidade, ou os insucessos inesperados convidam-no à reflexão, de certo modo preparando-o para o retorno ao Grande Lar...

Ninguém se detenha na defensiva enganosa em torno da realidade da vida após o túmulo, porquanto todos a enfrentarão sem qualquer disfarce.

Cada morte, por isso mesmo, é conforme cada existência. Nenhum privilégio a benefício de uns em detrimento de outros.

Morre-se como se vive, despertando-se depois com os recursos próprios que foram armazenados.

Por isso mesmo, nem sempre morrer biologicamente é desencarnar, desembaraçando-se dos liames carnais e libertando-se da argamassa celular.

De igual maneira, como a encarnação e a reencarnação constituem processos demorados de fixação do espírito no envoltório orgânico, a desencarnação impõe muitos fatores para a liberação desses equipamentos, especialmente de acordo com o uso que lhes foi dado durante o tempo de utilização.

É de bom alvitre, portanto, que todos, homens e mulheres, tenham em mente a presença da morte na sucessão dos dias como ocorrência natural que vem tendo o seu curso e que se completa no instante em que o tronco encefálico deixa de funcionar...

 Manoel Philomeno de Miranda